Possenti: Em defesa do gerúndio

VOU ESTAR – NDO

Sírio Possenti – IEL/Unicamp
no blog do Marcos Bagno

Todos os defensores da língua pura (não consigo entender qual o problema deles com as misturas) estão criticando uma locução verbal supostamente nova que apareceu no mercado. Confesso que não a ouvia, ou não me dava conta de que existia, até que tive minha atenção chamada para ela pelos guardiães da língua que imaginam que tudo aquilo de que não gostam ou for novo – o que vier antes – é necessariamente ruim. Se eles não gostam, deve ser interessante. Se acham que não serve para nada, alguma serventia deve ter.Não sei qual teria sido o estrato social que mais aderiu à novidade. O certo é que a locução aparece em todas as falas de todas as telemarqueteiras. Devem receber severo treinamento que inclui pelo menos duas exigências: não dizer nada que não esteja no script, e enunciar, em algum momento, a famosa fórmula “vamos estar -ndo”. O que seja “-ndo” depende do serviço. Se se trata de uma encomenda, então a empresa “vai estar enviando”. É uma reclamação? Alguém “vai estar providenciado”. Mas a expressão invadiu também as escolas: dia desses, um aluno me disse que ia estar me enviando um trabalho por e-mail. O alcance da novidade deve ser bem maior. Em seu pronunciamento em rede nacional de TV, em meados de agosto, o próprio Ministro da Saúde, José Serra, que não é jovem – mas talvez seja (tele)marqueteiro-, falou de “outra vacina que vamos estar aplicando amanhã”.Já disse que não sei o que é que algumas pessoas têm contra formas lingüísticas novas, até porque, em tudo, as novidades funcionam como índice de qualidade. Se bem que desconfio que até sei: todos gostam de novidade em tudo, exceto os que cuidam da língua nos domínios da gramatiquinha.No que segue, vou estar mostrando que não há nada de esquisito nessa forma tão criticada (seu único problema é não estar entre as expressões abonadas pelas gramáticas escolares). Vou estar apresentando uma análise preliminar, o que quer dizer que não estive estudando nada em especial para escrever este textinho – espero que o leitor perdoe a franqueza e, especialmente, o esboço preliminar de uma análise que pode até estar equivocada. Vamos por partes.Vejamos primeiro a sintaxe da locução: a ordem dos verbos auxiliares é perfeitamente canônica. Sabemos que os auxiliares vêm sempre antes do principal (como em “vou sair”); se houver mais de um auxiliar, há uma ordem permitida e outras proibidas (“tenho estado viajando”, mas não “estive tendo viajado”; “vou estar saindo”, mas não “estarei indo sair”). Resumo da história: a expressão nova está de acordo com sintaxe do português: sua ordem é ir + estar +ndo. É, pois, absolutamente gramatical.Vejamos agora o que significa. Os que não gostam da forma dizem que não serve para nada, que já há outra melhor para expressar a mesma coisa (eles também não são nada sutis). Ao invés de “vou estar mandando”, que se diga “vou mandar”, ou “mandarei”, dizem eles. Mas acho que estão errados: pode ser que nem todos os casos sejam claros, mas em muitos, nitidamente, a nova forma se caracteriza por um aspecto durativo (ou seja, trata-se de anunciar um evento que durará algum tempo para se realizar). Para que falar de aspecto durativo não pareça estranho, relembre-se (ou anote-se) que o chamado imperfeito do indicativo apresenta o mesmo aspecto: formas como “amanhecia”, “pintava”, etc, referem-se a eventos ou ações que não são instantâneas, mas que têm certa duração. Por isso, não seria a mesma coisa dizer “vou mandar” e “vou estar mandando”, exatamente por causa da diferença entre “ir” (que marca só futuro) e “ir + estar” (que marca futuro, por causa de “ir”, e “duração”, por causa de “estar”). “Vou estar providenciando” significa, entre outras coisas, que a providência não se dará instantaneamente. Além disso, o compromisso expresso em “vou providenciar” é mais incisivo do que o expresso em “vou estar providenciando”. Mais ou menos como é mais incisivo dizer “providenciarei” do que “vou providenciar”. Seria interessante verificar se a nova locução tem a ver com uma cultura da falta de compromisso (caso em que deveria ser adotada pela maioria dos governantes – vide Serra). Não seria de espantar que se pudesse estabelecer esta relação entre um aspecto da língua e um traço da cultura.Além desses, a meu ver, há outro aspecto importante, este de cunho pragmático: a expressão conota gentileza ou formalidade ou deferência (verdadeira ou simulada, não importa). Ou seja: bem ou mal, mesmo que seja para postergar um serviço de que se precise urgentemente, deve-se reconhecer que pelo menos a recusa é expressa de forma não grosseira, e nem mesmo franca (o que alguns preferem; eu mesmo, aliás).Imaginem que eu receba um convite para fazer uma palestra e não possa aceitar por alguma razão. Agora sei como responder. Antigamente, eu dizia, acho, que “não posso ir/aceitar”, ou que “não vou poder ir/aceitar”. A segunda forma é mais gentil do que a recusa seca expressa na primeira. Doravante, direi, e imagino que isso será muito mais simpático, que “não vou poder estar aceitando o convite”, ou que “não vou poder estar deixando de dar aulas nesta data”. Pode-se pensar qualquer coisa desse tipo de expressão, exceto duas: a) que não sirva para nada, já que expressa um aspecto e é sinal de deferência, pois se trata de uma fórmula extremamente gentil; b) que seja simples. É que se necessita de enorme sofisticação para colocar todos os auxiliares (ir, poder, estar) na ordem aceita pela gramática do português (coisa que ninguém estuda, evidentemente). Além de estarem numa certa ordem, cada um dos auxiliares deve estar flexionado numa forma específica: deve-se flexionar o verbo “ir” sempre no presente e de forma que concorde com o sujeito, deixar os verbos “poder” e “estar” no infinitivo e colocar o verbo principal no gerúndio. Freqüentemente, somos levados a pensar que não há como enfiar na cabeça dos estudantes umas míseras regrinhas relativas à colocação dos pronomes. Já pensaram se tivéssemos que estudar as regras de ordenação dos auxiliares? É bom descobrir que sabemos coisas tão sofisticadas.

Sobre CCBregaMim

Classe média. Não sai da gente. Mas melhora, se a gente estiver disposta a abandonar nosso lugar na opressão.
Esse post foi publicado em INTERPRETAÇÃO e marcado , , , . Guardar link permanente.

4 respostas para Possenti: Em defesa do gerúndio

  1. Raquel disse:

    alguem sabe expor o que esse texto significa qual o ponto de vista desse Autor como ele justifica esse texto ?

    • CCBregaMim disse:

      você está estudando o assunto?
      é simples.
      o preconceito em relação ao gerundismo se baseia no argumento
      de que ele é desnecessário e ignorante.
      possenti defende que, ao contrário, ele é educado e funcional.
      ou seja, é uma forma polida de incluir o tempo na linguagem.
      por isso é usado no telemarketing
      “vou estar encaminhando sua reclamação”
      é uma forma (educada) de dizer ao cliente que a resposta
      não será imediata.

  2. Ary disse:

    Maria, você falou pouco e bem. De minha parte, amanhã vou estar encaminhando esse texto para a universidade.

  3. Maria disse:

    Adoro quando alguém sabe virar algo de pontacabeça.
    É gente que pensa antes. Contribui. Beijos.

Deixe um comentário