EXISTE OU NÃO EXISTE? EIS A QUESTÃO.

Marcos Bagno – Abril de 2010

A ideologia purista no que diz respeito à língua é tão autoritária e dogmática que um de seus principais recursos retóricos é negar pura e simplesmente a existência mesma dos usos linguísticos que seus defensores rotulam de “erros”. Nesse discurso, se uma determinada construção sintática não é acolhida pela tradição gramatical, diz-se que “isso não é português”, ainda que 300 milhões de pessoas em quatro continentes falem assim. Se determinada palavra não vem registrada nos dicionários é porque ela “não existe”.
Esse discurso faz a operação principal das ideologias, no sentido clássico desse termo nas ciências sociais: o falseamento da realidade por meio da inversão da história. Dá a impressão de que, na aurora dos tempos, Deus disse: “Faça-se a gramática, faça-se o dicionário”. Assim a língua foi criada e somente depois surgiram as pessoas que iam falar a língua. Essa operação ideológica fica bem evidente no discurso, igualmente tradicionalista, de que “hoje em dia ninguém fala certo”, como se em algum momento do passado, numa Idade de Ouro linguística, todas as pessoas tenham falado a língua exatamente como ela vem prescrita nas gramáticas e nos dicionários. Pura fantasia, agridoce ilusão. Ninguém jamais, em lugar nenhum, falou, fala ou falará uma língua tal como vem desenhada e moldada nas gramáticas e nos dicionários. Essa “língua” registrada ali é que, de fato, não existe. É um modelo utópico, um padrão ideal, baseado numa modalidade de uso extremamente restrita, um cânone literário antiquado, e que despreza tudo o que a ciência moderna sabe a respeito das línguas: que elas são mutantes, variáveis, heterogêneas, instáveis.
Essa ideologia, infelizmente, está impregnada até hoje na maioria dos livros didáticos destinados ao ensino de português no Brasil. Embora tenham abraçado modernas teorias linguísticas no tocante à prática da leitura e da produção de textos, quando o assunto é gramática, continuam apegados a um modo de ver a língua que as ciências da linguagem já provaram ser francamente equivocado, falho, errado mesmo. Consultando um desses livros, por exemplo, encontrei a seguinte pérola: “Não existe ‘apesar que’.” Ora, se não existe, por que a necessidade de explicitar essa não-existência? É no mínimo irracional e ilógico apresentar, numa obra didática, alguma coisa que “não existe”. A verdade é que “apesar que” existe, sim, e sua simples menção no livro didático é a prova cabal dessa existência. Só que tal existência é condenada pela norma estreita e estrita que se pretende veicular como “língua certa”. Há uma distância astronômica entre não existir, pura e simplesmente, e existir e ser condenado – mas essa distância é facilmente vencida pelas botas-de-sete-léguas da ideologia. Consultando a internet, encontrei nada menos do que 305 mil ocorrências de “apesar que” em textos escritos, incluindo pareceres jurídicos, teses acadêmicas, artigos científicos. Para algo que não existe é um número bem alto, não? É uma pena que nosso ensino de português ainda se agarre com tanta unhas e dentes a um fantasma de língua, em vez de desdobrar em sala de aula a realidade múltipla, diversificada e fascinante da língua nossa de cada dia.

Sobre CCBregaMim

Classe média. Não sai da gente. Mas melhora, se a gente estiver disposta a abandonar nosso lugar na opressão.
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4 respostas para EXISTE OU NÃO EXISTE? EIS A QUESTÃO.

  1. Ed. disse:

    “Apesar que” não seja linguista como vc, fico feliz de pensar exatamente da mesmíssima forma.
    Costumo provocar os elitistas do idioma dizendo que é mais importante comunicar bem com uso corriqueiro do que gerar dúvidas com construções eruditas. Que a língua evolui também, ou principalmente, pela ignorância sobre a mesma.
    Abs

    • CC Bregamim disse:

      é… e as pessoas adoram fazer tudo o que o Pasquale manda
      (e em vez de dizer hamburguers ele quer que a gente diga hamburgueres!)
      as pessoas querem ter certeza que falam certo
      obedecem, ficam inseguras…
      a elite consegue, servindo de modelo de fala
      e apontando o povo como ignorante
      calar muitos discursos

  2. Rodrigo Bergamota disse:

    CC Bregamin,

    muito prazer, faz alguns dias que venho frequentando seu blog, muito bacana mesmo! Acho que o engajamento e a problematização do mundo que vivemos fundamental para nossa ação no mundo. Força e perceverença nesse mundo que se abre da blogosfera…

    O Bagno vai nas raízes do preconceito, onde nós não o percebemos, ele está na nossa fala, nas nossas expressões… Acho que aqui está um dos muitos caminhos da autocrítica que você fala no seu Manual
    Se percebíamos agora percebemos, oque faremos com isso?

    Abraços,
    Rodrigo

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